ana maria braga – eu sei, mas não devia lyrics
a gente se acostuma. mas não devia
a gente se acostuma a morar em apartamentos dos fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. e, porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar pra fora. e, porque não olha pra fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas, a acender a luz mais cedo. e, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão
a gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora de tomar o café correndo porque está atrasada, a ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. a comer qualquer coisa porque não dá tempo pra almoçar. a sair do trabalho porque já é noite. a dormir pesado sem ter vivido o dia
a gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. e, aceitando a guerra, aceita os mortos e, aceitando os mortos, aceita não acreditar nas negociações de paz
a gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: “ah, hoje não posso ir”. a sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. a ser ignorado quando mais precisava ser visto
a gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. e a ganhar menos do que precisa. e a fazer fila para pagar. e a pagar muito mais do que as coisas valem. e a saber que cada vez pagará mais e a procurar mais trabalho, pra ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar
a gente se acostuma à poluição, à luz artificial, às bactérias da água, à morte lenta dos rios, a não ouvir p-ssarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer os cães, a não colher a fruta no pé, a não ter sequer uma planta
a gente se acostuma a coisas demais, pra não sofrer. em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. se a praia tá contaminada, a gente molha o pé. se o trabalho tá duro, a gente se consola pensando no fim de semana. e se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado
a gente se acostuma pra poupar a vida. que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma
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